Atesto para os devidos fins que o Sr. Jorge da Cunha Sampaio Gomes,
brasileiro, casado, residente e domiciliado nesta Capital à Rua Fradique
Coutinho, nr. 1122, R.G. 090009099, em ordem com o serviço militar, está
devidamente liberado, nesta data, de preparar o relatório solicitado pelo
Sr. Nogueira, em virtude de graves problemas particulares. Outrossim,
fica ainda o Sr. Jorge devidamente autorizado a retirar-se da repartição no
horário que bem desejar, sem a necessidade de prestar quaisquer
esclarecimentos que venham a ser solicitados pelo seu superior acima
citado ou quem quer que seja. Esta autorização é válida por período
indeterminado, podendo ser alterada, mediante o aval do requerente.
São Paulo, sem data, sem hora, sem mais para o momento, subscrevo-
me, respeitosamente,
Jorge
E largou o relatório/atestado na mesa do chefe. Nem olhou para trás. Não
havia necessidade. Podia imaginar a expressão do chefe, a raiva manifestada
através da boca mordendo o lábio superior, como se fosse um predador. Mas
tio Jorge nem ligou. Continuou andando em direção à porta, abriu e saiu, não
sem antes se lembrar de batê-la com força. Com tanta força que até ele se
assustou. Entrou no elevador com um sorriso nos lábios. O ascensorista, Sr.
Agenor, ficou olhando para ele com o rabo de olho. Nunca havia visto o Jorge
sorrindo. Mas de qualquer maneira aquele não era um sorriso normal. Havia
algo estranho naquele sorriso. Mas “seu” Agenor não teve tempo de perguntar.
Logo chegaram ao térreo e tio Jorge saiu, agradecendo a viagem, coisa que
jamais havia feito antes. O ascensorista ainda teve o ímpeto de chamá-lo para
saber se havia alguma coisa errada, mas o dever o aguardava.
- Sobe!
Enquanto isso, tio Jorge já estava na rua. Deu esmola para aquela velhinha
que fazia ponto na esquina da repartição, desde que ele ali trabalhava. Nunca
havia dado um centavo sequer. Nem mesmo um resto de pão. Mas naquele
momento resolveu exagerar. Dez reais. A velhinha quase enfartou, mas logo se
recuperou e, antes que ele se afastasse, perguntou:
- Ei, seu moço! Isso não é falso, é?
Ele já não escutou. Estava absorto demais em seus próprios pensamentos.
Aquele era um dia especial, diferente, glorificante, estonteante. Sentia vontade
de fazer coisas que jamais ousara.
Entrou no cinema. Nem se incomodou em olhar o cartaz. Era um filme de sexo
explícito. Tio Jorge ficou estarrecido. Nunca imaginou que aquelas coisas
pudessem acontecer entre um homem e uma mulher. Saiu apressado do
cinema, preocupado em não ser reconhecido.
Andando pela rua, sem pressa de chegar em lugar algum, parou em frente de
um bar. Não era de beber. No máximo uma cervejinha no almoço do domingo.
Pediu cachaça, pura, purinha e da boa . Tomou de uma talagada só. Outra e
mais outra. Depois de última outra, já estava sentado no banquinho, cotovelo
apoiado no balcão, olhos revirados, língua enrolada. O rapaz atrás do balcão
olhou para ele mas, afinal, ele também já tinha seus próprios problemas.
Vai mais uma aí, meu amigo?
- Uma o que?
- Cachaça, ora. O segredo é não misturar.
- De que segredo você tá falando? Está acontecendo alguma coisa no país que
eu não sei?
- Olha, aqui, cara. Eu não tenho tempo de papo furado. Ou vai outra ou se
manda.
- Ninguém manda mais em mim. A partir de hoje eu sou um homem livre. Livre!
- Se o senhor continuar com esse papo furado, eu vou chamar a polícia.
- E pensa que eu tenho medo da polícia? Eu sou um homem livre. Livre!
E o cara do outro lado do balcão se encheu. Pegou o telefone, discou 190 e,
por incrível que possa parecer, em cinco minutos parou uma viatura em frente
ao bar.
Ficou dois dias numa cela fria, com um monte de bandido, tomando água com
gosto de cloro e comendo comida fria e sem sal. E, ainda assim, não parava de
falar, bem alto e para quem quisesse ouvir: Eu sou um homem livre. Livre!
Livre! Livre!
Kkkklk meu Deus que bênção eu me senti na beira do rio com meu cavalo branco tomando à fresca, é tão real a escrita que nos faz realmente se jogar de cabeça no personagem,é uma linguagem do cotidiano muito importante para nós atores se sentir à vontade na atuação, parabéns